"- Acerca-te de mim! - soprou ao ouvido de Govinda. Inclina-te mais! Mais ainda. Chega-te para bem perto de mim! E agora me dá um beijo na testa, ó Govinda!
Govinda pasmou-se, mas, atraído por sua grande afeição e por algum pressentimento, obedeceu ao desejo de Sidarta. Achegando-se a ele, imprimiu-lhe os lábios na fronte. E nesse instante aconteceu-lhe qualquer coisa singular. Enquanto os seus pensamentos ainda se detinham nas palavras estranhar, proferidas por Sidarta; enquanto seu espírito se esforçava, relutante e improficuamente, por eliminar tempo e por representar-se a unidade de Nirvana e Sansara; enquanto no seu íntimo certo desdém pelas opiniões do amigo se debatiam com irrestrita ternura e reverência, deu-se com o ele o seguinte fenômeno:
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e todavia davam a impressão de estar presentes simultaneamente, rostos esses que a cada instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta. Via a cabeça de um peixe, uma carpa, com a boca semi-aberta em infinita dor, peixe agonizante, de olhos vidrados. Via o rostinho de uma criança recém nascida, vermelho, enrugado, a ponto de chorar. Via a fisionomia de um assassino, no momento em que varava com a faca o corpo de sua vítima e, ao mesmo tempo, via esse criminoso a ajoelhar-se, algemado, para que o algoz o decapitasse com um só golpe de terçado. Via os corpos desnudos de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates de desvairado amor. Via cadáveres prostrados, imóveis, gélidos, vazios. Via cabeças de animais, de javalis, crocodilos, elefantes, touros, aves. Via divindades, Crisna, Agni... Via todos esses vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada qual a acudir o outro, a amá-lo, a odiá-lo, a destruí-lo, a pari-lo de novo. Cada qual expressava o desejo de morres, era apaixonada e dolorosa a profissão de efemeridade e, no entanto, não morria, apenas se modificava, renascia uma e outra vez, tomava aspectos sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre uma e outra configuração. E todos esses rostos repousavam, flutuavam, geravam-se mutuamente, esvaíam-se e confundiam-se."
mais uma vez, tudo se entrelaça
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